quinta-feira, 21 de julho de 2011

Antonina muito viva - uma animação



quinta-feira, 16 de junho de 2011

O barqueiro

Conto de Silzi Mossato publicado hoje no seu blog Lá Vem Maria

Do barqueiro ninguém sabia o nome, se é que o tinha. Todos o conheciam, mas ignoravam sua história. Sabiam apenas que um dia, num ano distante, instalara ali sua barca e iniciara sua atividade. Desde então, se mostrava incansável. Começava o trabalho ainda com as estrelas no céu e seguia ao ritmo do rio até que o crepúsculo restaurasse o brilho das mesmas. Repetia o rito ininterruptamente, sem obedecer a quaisquer regras sociais ou religiosas que indicassem descansos regulares. Somente os percalços naturais o desviavam. Chuva torrencial e ventos fortes levavam-no ao ócio.

A natureza, dizia, deve ser sempre respeitada. O enfrentamento nunca favorece o desafiante.

Os moradores da região simplesmente aceitavam suas regras e usufruíam do beneficio oferecido. Com o tempo, desistiram das perguntas pessoais e se algum desavisado insistia, as respostas eram sempre evasivas. Mas, quando um dos embarcados desatava a falar de si, encontrava o melhor dos ouvintes. Bastava que alguém, atrapalhado com a vida, aproveitasse a travessia para desabafar que o barqueiro sorria levemente, franzindo o canto dos olhos e da boca. Depois, com voz mansa e monótona contava uma de suas histórias, com desfechos que costumeiramente causavam surpresa ao interlocutor. Histórias que pareciam sempre inéditas. Coloridas e belas, não definiam seu interprete como possuidor de uma imaginação excessivamente fértil ou de uma vida rica em experiências. Somente algumas de suas frases eram constantes. Melhor a dor que nada, dizia afável com o ouvinte. Cuide de sua dor com carinho, ela o faz vivo, completava em algumas ocasiões. Às vezes, quando algum sofredor resistia, o homem franzia os olhos, estendia largamente a boca e dizia: ser infeliz é uma escolha fácil. Difícil é estar satisfeito.

E assim, desafiando os interlocutores ou apenas sendo solidário, o barqueiro, fazia da travessia sua vida. Ouvia dramas, pesadelos, histórias mórbidas e felizes; repetia suas frases e pronunciava conselhos e aproveitava a companhia das estrelas, águas e nuvens. As contemplou e apenas a elas contou seus desejos e sonhos. Fez do empenho uma rotina leve e harmoniosa, própria daqueles que não esperam chegar a qualquer outro destino.

Macon, poeta jovem, cheio de brilho e furor, chegou à barca numa tarde de chuva intensa e forte correnteza. O rio largo e sereno estava alterado. Passava feroz, carregando folhas, galhos ou qualquer outro elemento que ousasse tocar a água barrenta. Chegou apressado, ansioso para atravessar. De imediato interpelou o barqueiro, que sob um pequeno abrigo, aparentava contemplação.

- A barca está parada?

- Está. É perigoso atravessar sob o temporal.

- Espera longa?

- Impossível prever. Depende da duração e do volume da chuva. Para quem tem pressa, melhor seguir rio acima.

- Na estrada barrenta?

- A estrada é ruim e a pequena ponte oferece riscos, mas com cuidado chega-se ao outro lado em hora e meia.

As respostas claras não foram suficientes. O poeta, inquieto, busca resolver a questão a seu modo. E seu modo não incluía enfrentar longo trecho de lama e sob chuva. Além de que, desconhecia o trajeto.

- Sempre que chove a barca para?

- Se é chuva forte...

- Mesmo quando é passageira?

- Paro enquanto durar.

- E se chover durante uma semana?

- Espero.

- E as pessoas que precisam atravessar?

- Usam a estrada. Demora, mas é mais seguro.

- Nunca atravessou com chuva?

- Uma vez. Um menino ferido perdia sangue. Arrisquei. Travessia difícil, mas deu certo.

Volumosas baforadas tiradas com prazer do charuto escuro intercalavam as falas do homem enquanto o rapaz levava as mãos aos cabelos escuros e grossos, as colocava nos bolsos da capa que cobria o corpo, estalava os dedos e retomava as perguntas. Sem delongas, o barqueiro tomou a rédeas da conversação.

- Compromisso urgente na vila?

- Não fico na vila. Retornar a cidade.

- Alguém esperando?

O poeta gaguejou. Quis retrucar, dizer que não era da conta do homem. Respondeu a contragosto.

- O editor me aguarda. Tenho um bom livro...

- Huum, - resmungou, franzindo a testa. Sem cerimônia, voltou ao charuto, deixando o rapaz desconcertado. A urgência suplantava a razão e um matuto desconhecido apontava o desatino. Desconhecido e detestável. Mas não podia furtar-se ao fato de que com freqüência agia assim. O homem com seu charuto não esboçava denúncia ou repreensão. Satisfez a curiosidade e calou-se.

Macon, contaminado com silêncio do outro, cuidou de retirar a capa molhada. Pendurou o apetrecho num pequeno gancho e se acomodou num tronco que servia de banco. Esqueceu a pressa e descuidado, contemplou o estranho grisalho, rosto com rugas que mais pareciam marcas de riso que de velhice, porte ereto e mãos finas e longas. Homem distinto dos caboclos da região, segurava o charuto com elegância rara.

- Um charuto?- perguntou o barqueiro, vendo-se observado.

O poeta, que não avistara na região senão cachimbo e cigarros de palha, aceitou o oferecimento.

- Vicio?

- Posso viver sem ele.

-Por que não pára?

- Não tenho motivo pra parar. E uma boa baforada aguça a meditação.

- Meditar é verbo desconhecido nessas paragens.

- Comum é matutar. Ainda carrego marcas.

- Está ha pouco tempo na região?

O homem riu com estardalhaço. Depois, corrigindo a atitude, respondeu com cortesia.

- Sequer lembro o ano cheguei.

- Saudades de antes?

- Dos lugares onde estive, guardo algumas imagens enfumaçadas, mais nada.

- Mas os costumes permaneceram intactos?

O homem sorriu. A leveza com que termos e expressões engavetadas vinham à tona provocava diversão e incomodo. Longe ia o tempo das discussões ardentes, da ansiedade em expor a perplexidade frente ao mundo ilógico e injusto e da curiosidade veemente. O jovem recrutava o que havia doado ao rio, para que levasse em suas águas.

- Então, vai esperar? – arriscou o homem.

- Acha que seguindo pela estrada economizo tempo?

- Tempo? Não. Não há como. Ele será sempre o mesmo, tenha você pressa ou não. Cada coisa a seu tempo e cada uma dura o que tiver que durar. Nem mais nem menos.

- Boa filosofia.

- Ou crença. Na minha o tempo desconhece pressa ou lentidão. Ele é tudo e não existe. Tudo e nada, simultaneamente.

Macon desconfiava. Homem estranho. Não conhecia a luta travada fora dali, dia após dia. Não sabia da angústia de cada vitória, do esplendor de cada ganho. Tão longe das cidades não haveria de sonhar com sua medonha loucura. Mas não desejava uma discussão filosófica. Preferiu o silêncio ao embate.

O barqueiro atirou uma pedra à poça d’água e apontando para os círculos que alargavam sucessivamente, indagou:

- Conhece o infinito?

O rapaz o olhou, esquivo. O outro, ignorando a reação, continuou.

- Quem vive o cotidiano das cidades, aprende a igualar o inigualável. Tempo e o dinheiro, prazer e gloria, vida e fama. Pois ali está. Quer vasculhar o tempo? É só sonhar. Nele pode-se ir e vir. Soltar-se e voar. Seguir e voltar e novamente ir. Nada de alucinante ou amedrontador. Apenas círculos, simultâneos, sucessivos e constantes.

Para o poeta, os círculos estavam adjetivados: devaneios de um solitário, que caberiam na poesia, mas não na guerra editorial ou na briga pelo espaço na vitrine das livrarias.

- Acha loucura?

- Sequer sabe de onde venho.

- Pura ilusão. O corpo conta o que vivemos, o que pensamos, o que sonhamos.

A irritação talvez irrompesse em Macon, não fosse o rio de forte correnteza e água barrenta. O barqueiro o desnudava. Poderia contestar qualquer argumento racional, mas o outro assinalava o incontestável, ainda que despercebido. Procurou um xingamento, mas desistiu. Voltou ao silêncio. Fugiu do olhar invasivo atirando pedregulhos ao rio. Pra que enveredar por caminhos obscuros? Estava bem, desenrolando seus fios e construindo sua teia. Pra que mudar o rumo da vida? Atendia as pressões do editor, mas acumulava vitórias. Gostava do brilho das noites de autógrafos, das entrevistas e matérias nos jornais. Estava nas listas de melhores autores do ano, as vendas cresciam vertiginosamente e ele investia cada minuto naquilo que acreditava ser tudo que desejava. Pra que deixar que um insignificante desconhecido interferisse?

Cansado dos pedregulhos e do movimento repetitivo, o poeta descansou, prendendo os olhos no outro. Inalterado, o homem continuava apanhando pequenas pedras e as atirando, uma a uma, na mesma poça.

- Feche os olhos. Experimente os círculos - sugeriu repentinamente, sem demonstrar grande interesse.

Macon obedeceu, ainda que não pretendesse entregar-se aos delírios. Afinal, que simples seriação de círculos poderiam provocar?

Olhou fixamente para a poça, seguiu um e outro círculo, depois fechou os olhos. No escuro das pálpebras cerradas os círculos continuaram. Nasciam, alargavam, sumiam e, novamente nasciam, cresciam e sumiam. Pensamentos concretos impunham cotidiano, que entremeavam círculos que nasciam, alargavam e morriam.

Novo pensamento e após a interferência, novos círculos, repentinamente nascendo, infinitamente crescendo. Ao indicio de entrega, sobrepunha batalhas intermináveis, estratégias, vitórias. Mas a chuva de maior volume interferiu com seu ruído ininterrupto, repetitivo, relaxante. O percurso de cada pingo, da nuvem ao solo, da nuvem ao rio, da nuvem a poça d’água. Minúsculas ondas sendo formadas no torno. Nascendo, crescendo, deformando. Imediatamente, outro pingo, outra onda. Ondas circulares, pequenas. Ondas enormes, misturando-se a outras, minúsculas e novas. Ondas que se formavam rapidamente. Ondas que cresciam lentamente até perder a força. A velocidade nula. O tempo, desfigurado.

O barulho de um trovão interrompeu a viagem e o poeta recobrou o controle. A frente, a chuva, caindo com verdadeira fúria enquanto o rio empurrava um amontoado de cascalho, sem qualquer dificuldade. Ao lado, o estranho permanecia sem abrir os olhos.

- Assustado com o devaneio?

O rapaz não respondeu. Fitou-o firmemente, mas não o definiu. Era excessivamente céptico para crer em bruxos ou feiticeiros. Estava intrigado demais para ignorá-lo.

O barqueiro, abrindo os olhos, sorriu. Não contou nenhuma história, não proferiu nenhuma frase. Apenas sorriu e retomou o charuto. Macon o seguiu. Durante algum tempo nenhum palavra foi dita. Era só chuva, que de torrencial, fez-se amena. O vento ganhou leveza e o céu, luminosidade.

- A chuva está parando. Talvez possamos atravessar - apressou o rapaz.

- Olhe bem. Veja a correnteza. Seria imprudência.

- Fosse prudente, não estaria aqui!

A voz do rapaz era baixa e o barqueiro, compreendendo que falava para si mesmo, não contestou. Macon retomava a própria trajetória. Buscara aquelas paragens movido pelo prazer. Não pelo simples prazer de estar ali e sim pela possibilidade de transformar a viagem em mais uma obra, em mais uma criação e talvez, em mais uma vitória. Antes de partir, traçara um roteiro semelhante a um círculo e estava para completá-lo. Matas virgens, plantações, criações de animais, e, principalmente, as pessoas dos lugarejos eram seu foco de atenção. O jeito de viver de cada um ia se transformando em literatura da melhor qualidade. Poemas, em sua maioria. As conversas de armazéns e botequins ou o vai-e-vem contínuo das pessoas logo habitariam as páginas de livros, jornais ou revistas. A obra completa seria dividida com o editor de faro infalível. Mas o rio e seu barqueiro retardavam o encontro.

- O que parece empecilho, pode ser uma dádiva - voltou a interferir o homem.

- Dádiva?

- A conquista inesperada. O salto que ignorava, mas que já pode dar.

- Um enigma?

- Uma descoberta.

A estiagem trouxe a revoada de pássaros no céu que clareava. O barqueiro seguiu a revoada. No corpo quase inerte, sinais de profunda respiração.

- Belos pássaros. Basta que a chuva os deixe, ganham o céu. Sábios pássaros. Sempre sabem como e quando, ir e vir.

Macon o ouviu sem reagir. O homem retornou aos pássaros e a inércia. O rapaz pensou em seguir pela estrada, mas desistiu. Tomou o charuto. Entre uma tragada e outra, seguia os círculos de fumaça e entre círculos, os pássaros e os pensamentos. Outros círculos, o retorno dos pássaros, mais pensamentos e novos círculos e mais pássaros. Os pensamentos submergiram, o poeta esqueceu o charuto e segui as curvas das asas em suas trajetórias longas e livres. O ar inflou o peito, o corpo reagiu com leveza deixando os membros em suaves inclinações. Os músculos perderam o tônus, dando lugar ao vôo. Cerrou os olhos e entregue ao sonho, viveu o pássaro. No vôo via o rio e a mata desde o céu. Do alto, sobrevoou a si mesmo e desejando que os pés deixassem o chão, chamou: vem conhecer o infinito. Vem! É só desejo, sonho, entrega. Vem que é só o infinito, que ata e desata, transcende e amarra. Loucos e lúcidos, sensatos e disformes. Vem que é só dominar o ar, ir e voltar. Basta arriscar.

Macon arriscou e descobriu o desejo de se jogar nas águas do rio, de emergir buscando o ar para os pulmões e retornar ao céu, completamente livre. Descobriu o desejo quase incontrolável de entregar-se ao amor, sem fazer qualquer pergunta. O limite entre entregar-se e perder-se era tênue demais, mas o pássaro pedia para continuar. Mas o vôo pareceu não ter direção e amedrontado, abriu os olhos e evitou as aves e o rio. Mais uma vez ocorreu-lhe caminhar rio acima. Talvez fosse mais prudente distanciar-se daquele homem e daquele lugar.

- Se for agora vai chegar ao anoitecer - disse-lhe o barqueiro, ainda imóvel.

- Não posso permanecer aqui

- Tenho acomodações para dois. Amanhã já não terá correnteza e poderemos atravessar ainda com o alvorecer.

- Como pode saber?

- Já não há nuvens ao sul, de onde sopra o vento.

- Se o vento virar?

- Não há indícios.

O rapaz cedeu. Seria insano caminhar em estrada de lama até o anoitecer. Tomou a capa e a pequena bagagem e seguiu o anfitrião pela trilha que desembocou uma trilha, num caminho bem cuidado, ladeado por flores e pedras. Seguiram morro acima até o topo, onde uma pequena cabana feita em madeira bruta, plantada sobre meia dúzia de troncos grossos e irregulares, quebrava a paisagem. Um único vão, cortado por um pequeno balcão que marcava a cozinha. Um fogão à lenha, uma prateleira, poucas louças e panelas. Da varanda, no entanto, avistava-se o rio e o céu, atrelados a mata verde com focos coloridos de ipês de várias cores.

O poeta aproveitou o banho de água aquecida no fogão à lenha, experimentou o chá quente e comeu torradas com mel e queijo, esqueceu os temores e usufruir da quietude singular.

- Difícil compreender como um homem urbano pode viver aqui.

O rapaz esperava resposta, mas o homem sequer balbuciou silaba. Soltou vagarosamente a fumaça presa nos pulmões.

- Não é daqui, nem de lugar semelhante.

À constatação não deixou brechas a fuga, então respondeu com singeleza.

- É natural que aponte que não sou homem dessas paragens. Não trabalho a terra incansavelmente, não interpelo o tempo pra que interrompa a chuva é incessante, nada armazeno para mim ou para outros. Mas também não desejo seu mundo.

- E o mundo dos lavradores?

- Para viver como eles é necessário mais força que aquela a mim concedida. Por isso sou barqueiro e não produtor ou vaqueiro.

- Não tem desejo de voltar as cidades?

- Para sobreviver em suas cidades necessitaria de boa dose de agressividade. Já não disponho de tanto.

Macon dissecaria o homem, mas ele fez de todas as possíveis questões, uma só. E a respondeu lenta e preguiçosamente.

- Já não penso no lugar de onde vim nem naqueles por onde passei. Já não tenho um passado que me oriente ou um desejo que me conduza. É certo que fui jovem, afoito e presunçoso e que pensava dominar o conhecimento e a verdade. Mas a vida, tinhosa como é, fez com ficasse solto em seu balanço.

- Esse balanço...

- Se quer saber dele, é só sentir vento e ouvir o rio. Talvez encontre verdades que sequer vislumbramos.

Ao silêncio imposto, o poeta não conseguiu transgredir. Deixou que o vento o tomasse para um passeio entre cheiros de flor e mato. O barulho do rio, semelhante à cantiga velha e gasta, carregou-o para a correnteza. Aos poucos, abandonou o companheiro e foi ter com as águas. Através de seu corpo transcorreu o rio. Da cabeça aos pés, jorrou, levando dores, medos e angústias. A impetuosidade cedeu à entrega. A curiosidade ao desejo. Viajou entre pedras, impulsionado pela correnteza. Foi resgatado pelo pássaro que habitou seu corpo. Levado ao céu, mergulhou, submergindo, para em seguida, voltar ao ar e novamente ao rio. Ao retornar não soube do tempo. Sem dizer palavra, buscou a cama preparada para ele. Adormeceu em seguida. Teve sonhos leves e bons.

O alvorecer estava presente quando foi acordado pelo barqueiro. Depois de um desjejum leve, o seguiu rumo à travessia.

Na barca, o silencio compactuado. Sobre as águas do rio calmo, reflexos tímidos do sol acompanhavam os navegantes. Na outra margem, já em terra firme, Macon olhou o companheiro e sorriu. Transformado, deixava os olhos falassem de sua emoção. Era hora de despedida e o barqueiro atreveu-se a perguntar-lhe o nome.

- Macon - respondeu-lhe o rapaz. No rosto do barqueiro apontou palidez descabida, mas ele a ignorou e sorrindo, fez de um aceno sua despedida. Antes de partir, ainda cravou os olhos no poeta. Curto instante no qual viu seus próprios olhos, seus afetos sua história. Voltou a sorrir, saudando a vida, seu balanço e suas artimanhas.

De uma das margens Macon, o poeta, partiu certo de que olharia a vida com olhos de pássaro. Da outra, Macon, o barqueiro, seguiu, rumo a cabana vazia. Não voltou ao rio. Os dias seguiram e ninguém ouviu suas histórias ou suas frases. Também não viram seu sorriso nos cantos dos olhos e da boca. Diziam que havia adoecido. Ele, no entanto, espreitava quieto e cauteloso, o jogo da vida e seu delicioso risco.

Noites de inércia e deleite devam lugar à prolongadas vigílias enquanto sessões de autógrafos, o rosto nos jornais, pessoas e emoções até então esquecidas, tomavam o lugar dos pássaros e do rio.

A lua cheia era revivida quando um novo barqueiro substituiu o velho Macon. Dele, soube-se apenas que havia partido. Diziam alguns que fora em busca de antigos lugares e pessoas que insistiam em povoar seus sonhos. Outros insistiam que o dono da travessia, enveredara por antigos caminhos a procura de um jovem de nome igual ao seu. Desejava desvendar-lhe o feitiço.


terça-feira, 14 de junho de 2011

Queremos Taiguara de volta!


Fruto de uma união de talentos poucas vezes visto na historia da MPB e considerado até os dias de hoje uma inovadora obra prima, o Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara é um importantíssimo patrimônio cultural Brasileiro. Mas não está disponível no Brasil e nunca foi gravado em CD – só em sites no exterior - porque a fita máster foi parar nas mãos de uma gravadora japonesa que detém ainda os direitos autorais sobre a obra. Imyra Chalar da Silva, filha de Taiguara, lançou em 2004, se não me engano, uma campanha de repatriamento da obra. Mas o próprio site oficial onde se poderia participar da campanha foi descontinuado e Imyra prossegue com a reivindicação através do Orkut e do Facebook.

Imyra Chalar da Silva, filha de Taiguara, que hoje mora em Miami, e coordena a campanha de repatrimento do disco

Eu tive a chance de comprar o disco em 1976, antes de ser recolhido pela censura, e tenho até hoje as músicas todas gravadas em MP3. Uma das músicas do disco que mais me marcou foi “situação”, música cuja letra talvez seja o prenúncio de seu destino :
Não, não adianta não
A situação já está fora das suas mãos
Nao, não adianta não

Como é que você vai me dar
o que já é meu
Como é que você vai criar
o que já nasceu

Como é que você resolveu
que eu sou livre,
Agora você esqueceu
Que só quem pode me libertar
sou eu

Voce diz que esse é o tempo
da vida se distender
Mas quem faz primavera é o inverno
nao e você

Volta sempre um momento na história
em que mais um império deixou de ser
Pois assim é o futuro p'ra nos
Só o que você vai mesmo fazer

É sair ou deixar eu me abrir
e deixar tudo acontecer
É sair ou deixar eu me abrir
e deixar tudo acontecer

A trajetória de Taiguara, um de nossos maiores compositores, carrega toda uma história de perseguição e boicote nas mãos da ditadura militar, quem recolheu o disco das prateleiras apenas 72 horas após o lançamento. No ano de 1976, este trabalho foi censurado e nunca mais disponibilizado em nossa terra. Em 2002, o disco foi lançado exclusivamente no mercado Japonês, tornando-se disponível para compra apenas em sítios estrangeiros. O reconhecimento internacional de nossas riquezas sempre será algo positivo, porem não é justo que o próprio Brasileiro tenha difícil acesso a uma parte tão importante de sua herança cultural.
Sobre o disco escreveu Thiago Filardi: ”Imyra é fruto de um período muito específico da nossa história, e mais ainda da história de Taiguara: o Brasil ainda vivia uma ditadura, apesar de mais branda que anteriormente, e o músico vivenciava uma perseguição implacável pela censura. Após inúmeras canções vetadas, um auto-exílio e um projeto abortado, era quase impensável que ele apostasse todas as forças num projeto tão grandioso e corajoso, que além de despender muito dinheiro com horas de estúdio, uma orquestra inteira e mais dezenas de músicos, era ainda mais virulento nas suas críticas ao governo, o que não significa que seja panfletário; ao contrário, Taiguara faz uso corrente da ironia e da metáfora e só é mais direto quando canta em espanhol (“Ay, Hermana/Qué hasta que el dia ese llegue/Tu no te canses, no mueras/Sin callas todas lãs represiones”).
Apesar de toda a complexidade melódica, harmônica e conceitual que envolve Imyra, não é difícil traçar suas influências e contextualizá-lo dentro daquele período, em que a música brasileira passava por grandes renovações estéticas, a exemplo da música livre praticada por Hermeto Pascoal (figura importantíssima para a configuração sonora deste LP), Egberto Gismonti e do pop/rock idílico, mas extremamente sofisticado do Clube da Esquina. Foi importante também para a concepção do tema, o livro Quarup, de Antônio Callado, de onde Taiguara tirou os nomes Imyra (a volta aos verdes musgos da infância), Tayra (o sêmen do tempo no ventre do universo) e Ipy ( o velho e o novo diante do infinito comum). É possível, portanto, esboçar um painel musical e ideológico que serviu de base para o conteúdo e estrutura cabalísticos do álbum, que incluem a fixação pelo número 7 (os dois lados divididos em sete canções, a faixa “Sete Cenas de Imyra”, e que também possui o andamento 7/8), a própria letra incompreensível de “Sete Cenas de Imyra” e as experimentações sonoras realizadas através de manipulações com fita, emulando sons da natureza e flertando com a música concreta – nesse ponto, a intervenção de Hermeto é mais que perceptível.
Seria injusto, entretanto, qualificar o valor da obra a Hermeto Pascoal (como já fizemos no disco Orós” de Fagner) e aos músicos de quilate que participaram da gravação, como Wagner Tiso (produção e regência de orquestra), Toninho Horta (violão), Jacques Morelenbaum (violoncelo), Lúcia Morelenbaum (harpa), Zé Eduardo Nazário (bateria e percussão), Nivaldo Ornellas (sax soprano, tenor e flauta), J.T. Meirelles e Ubirajara Silva, que toca bandoneon em “Primeira Bateria”. Todas as composições são de Taiguara, que além de cantar, toca piano, sintetizador e mellotron, assim como assina os arranjos e orquestrações ao lado de Hermeto. É claro que se o último não estivesse presente, o álbum não teria o mesmo teor experimental e as melodias talvez não fossem tão ricas, como assustadoramente são – e em certos fraseados lembram bastante o estilo veloz e altamente complexo de Hermeto justapor notas. Mas notemos a interpretação brilhante do cantor em “Sete Cenas de Imyra” que alterna, na distância de uma estrofe, um registro gravíssimo e outro extremamente agudo, ambos incômodos para qualquer vocalista. Ou então basta analisar Imyra faixa por faixa, para notar como Taiguara não só domina perfeitamente todas as nuances dos registros vocais, como passeia com segurança por diversos gêneros musicais, aos quais confere muita riqueza melódica. Tem bossa nova (“Terra das Palmeiras”), samba-canção (“Situação”), marchinha (“Primeira Bateria”), baião (a versão para “Três Pontas” de Milton e Ronaldo Bastos), além de elementos de jazz, rock e samba presentes em todas as músicas.
Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara não só trabalha com muitas referências como subverte algumas delas. É o exemplo de “Terra das Palmeiras”, na qual a citação à “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias é evidente (“Sonhada terra das palmeiras/Onde andará teu sabiá?”). Contudo, a citação mais genial do disco é a de “Aquarela de um País na Lua”, que pelo nome já remete à “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Taiguara e Hermeto partem da célula melódica mais famosa da última para construírem um fraseado belíssimo, que servirá de melodia principal à faixa. Nesse momento, discurso sonoro e político andam juntos, pois se o intuito é desmantelar a velha noção nacionalista e romântica de Ary Barroso em plena ditadura militar, nada mais apurado que fazê-lo ao desconstruir e recontextualizar um de seus temas melódicos mais notórios.
No final, em “Outra Cena”, com a voz de Taiguara acompanhada apenas pelo piano, ele termina cantando “Só não sofreu quem não viu/Não entendeu quem não quis…”, o que nos lembra que seu companheiro Hermeto lançou, doze anos depois, um disco chamado Só Não Toca Quem Não Quer. Sobre Imyra, Tayra, Ipy e Taiguara, podemos afirmar que, apesar de não ter sido relançado no Brasil até hoje, existem as facilidades da internet e só não ouve esta pérola – resultado de uma confluência de gênios, mas catalisada por um só – quem não quer”.

A campanha de repatriamento é um apelo a gravadora para disponibilizar esta obra na sua terra natal. Ao aderir, você estará contribuindo em defesa da preservação de nossa cultura, e assim, cumprindo um dever cívico para cada Brasileiro que se orgulha de suas raízes. Agradecemos sua cooperação e esperamos poder contar com o auxilio de cada um de vocês para a divulgação de nossa campanha entre amigos, familiares, espaços virtuais e publicações relevantes a projetos culturais.
Taiguara Chalar da Silva (Montevidéu, 9 de outubro de 1945 - São Paulo, 14 de fevereiro de 1996) foi um cantor e compositor Brasileiro, embora nascido no Uruguai durante uma temporada de shows de seu pai, o Bandoneonista e Maestro Ubirajara Silva.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1949 e para São Paulo, posteriormente, em1960. Largou a faculdade de Direito para se dedicar à música. Participou de vários festivais e programas da TV. Fez bastante sucesso nas décadas de 60 e 70. Autor de vários clássicos da MPB, como Hoje, Universo do teu corpo, Piano e viola,Amanda, Tributo a Jacob do Bandolim, Viagem, Berço de Marcela, Teu sonho não acabou, Geração 70 e "Que as Crianças Cantem Livres"; entre outros.
Considerado um dos símbolos da resistência à censura durante a ditadura militarbrasileira, Taiguara foi um dos compositores mais censurados na historia da MPB, tendo cerca de 100 canções vetadas. Os problemas com a censura eventualmente levaram Taiguara a se auto-exilar na Inglaterra em meados de 1973. Em Londres, estudou no Guildhall School of Music and Drama e gravou o Let the Children Hear the Music, que nunca chegou ao mercado, tornando-se o primeiro disco estrangeiro de um brasileiro censurado no Brasil.
Em 1975, voltou ao Brasil e gravou o Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara com Hermeto Paschoal, participação de músicos como Wagner Tiso, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Jacques Morelenbaum, Novelli, Zé Eduardo Nazário, Ubirajara Silva e umaorquestra sinfônica de 80 músicos. O espetáculo de lançamento do disco foi cancelado e todas as cópias foram recolhidas pela ditadura militar em poucos dias. Em seguida, Taiguara partiu para um segundo auto-exílio que o levaria à África e àEuropa por vários anos.
Quando finalmente voltou a cantar no Brasil, em meados dos anos 80, não obteve mais o grande sucesso de outros tempos, muito embora suas músicas de maior êxito tenham continuado a serem relembradas em flashbacks das rádios AM e FM.
Faleceu em 1996 devido a um persistente câncer na bexiga.
Discografia
Discografia (Parcial)
1965 - Taiguara! - Philips - LP
1966 - Crônica da Cidade Amada - Philips - LP
1966 - Primeiro Tempo 5x0 - Philips - LP
1968 - O Vencedor de Festivais - Odeon - LP
1968 - Taiguara - Odeon - LP
1969 - Hoje - Odeon - LP
1970 - Viagem - Odeon - LP
1971 - Carne e Osso - Odeon - LP
1972 - Piano e Viola - Odeon - LP
1973 - Fotografias - Odeon - LP
1974 - Let The Children Hear The Music - KPM-EMI - LP
1975 - Imyra, Tayra, Ipy - EMI-Odeon - LP
1981 - Porto de Vitória / Sol do Tanganica - Alvorada-Continental - Compacto simples
1984 - Canções de Amor e Liberdade - Alvorada-Continental - LP
1994 - Brasil Afri - Movieplay – CD
Comunidade no Orkut: http://www.orkut.com/Community?cmm=6412859&hl=pt-BR
No Facebook: http://www.facebook.com/pages/Imyra-Tayra-Ipy-Taiguara-Album-vetoedRepatriamento-do-disco-censurado/271469219151

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Rumo a uma Marcha Nacional da Liberdade

Rumo a uma Marcha Nacional da Liberdade

Somos todos indignados? Debate nesta quinta-feira procura articular coletivos jovens que propõem novas pautas emancipatórias – e não querem ser tratados com gás-pimenta e tasers

Por Antonio Martins


Marcha Nacional da Liberdade: 18/6 (Sábado), em dezenas de cidades brasileiras:Localize e participe

Debate: Violência policial na periferia e armamento “menos letal” em manifestações


Quinta-feira (9/6), às 19h.
Veja vídeos abaixo e o texto na sequência

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“Violência policial na periferia e ‘armamento menos letal’ em manifestações”. Com um debate sobre este tema [veja dados acima], um conjunto de coletivos jovens estabelecidos em São Paulo – mas com laços nacionais – lançou nesta quinta-feira (9/6), um esforço que pode contribuir para propagar no Brasil uma nova cultura política. Convencidos de que é preciso superar o capitalismo, os organizadores não cabem, contudo, na imagem tradicionalmente associada à esquerda. Acreditam que política se faz principalmente por meio de opções quotidianas. Valorizam a diversidade. Articulam-se (com eficácia crescente) de modo horizontal.

Os coletivos defendem, entre outras causas, o passe livre no transporte coletivo (Movimento do Passe Livre-MPL), a legalização de drogas hoje ilícitas (Desentorpecendo a Razão-DAR), o apoio aos movimentos sociais (Aymberê), a produção cultural independente, difundida por circuitos não-mercantis (Fora do Eixo). Juntos, conceberam e realizaram com êxito, em 28 de junho, a Marcha da Liberdade [ver relato em Outras Palavras], em São Paulo. Agora, querem dar-lhe caráter mais amplo. Em 18 de junho, 33 cidades preparam atividades de rua que, juntas, comporão a Marcha Nacional da Liberdade – construída tanto em reuniões presenciais quanto numa página própria no Facebook.

Por trás da novidade, há dois processos simultâneos. Existentes há vários anos, os coletivos acima – e diversos outros, que compartilham pontos de vista e formas de organização semelhantes – têm alcançado, nos últimos meses, poder de convocação surpreendente. Em janeiro, uma indignação que se difundiu via net reuniu centenas de adolescentes, numa série de manifestações contrárias ao fechamendo do Cine Belas Artes. No mês seguinte, começaram os protestos contra o aumento das passagens de ônibus, que atraíram participação inédita e tiveram fôlego para se estender por muitas semanas. A partir de maio, uma sequência impressionante: “churrasco de gente diferenciada” (14/5), para exigir a construção de uma estação de metrô rejeitada por uma minoria influente no bairro de Higienópolis; marcha pela legalização da maconha (21/5); marcha da liberdade (28/5) e “marcha das vadias”, pela liberdade sexual e contra o machismo.

Todas estas manifestações, que reuniram entre várias centenas e alguns milhares de pessoas, foram organizadas de forma não-convencional. O convite partiu de indivíduos (como no “churrasco”) ou coletivos. Partidos políticos, embora bem recebidos em todas as ocasiões, tiveram papel discreto. A horizontalidade estendeu-se à ausência de carros de som e de oradores oficiais. Em sua nova “arquitetura”, os atos oferecem a cada participante ou grupo amplas condições de manifestar suas causas (por meio de cartazes, faixas, refrões). Mas nenhum está autorizado a se sobrepor aos demais.

O segundo motivo que impulsiona a Marcha Nacional da Liberdade é a necessidade de inibir a repressão. As novas manifestações estão sendo confrontadas por uma selvageria policial que não se via desde a ditadura militar. São Paulo destaca-se de novo – aqui, por reacionarismo. Na maioria dos protestos contra o aumento das tarifas de ônibus, e na marcha pela legalização da maconha, a polícia usou, contra manifestantes pacíficos, armas (balas de borracha, gás pimenta, bombas de “efeito moral”) e métodos (espancamentos brutais) típicos de quem procura desmobilizar pelo terror. As sensações de cerceamento à liberdade e retrocesso institucional foram agravadas por um comportamento do Ministério Público estadual incompatível com a democracia. Promotores que deveriam encarregar-se do combate ao crime organizado acostumaram-se a requerer da Justiça, por meio deestratégias esdrúxulas, liminares que foram usadas como pretexto para a violência.

Denunciar e desarmar a volta da repressão parece ser estratégico para os novos movimentos. É por isso que o debate desta quinta-feira – o primeiro, em preparação à Marcha Nacional da Liberdade, procura abordar a brutalidade da polícia. Ao fazê-lo, introduz uma novidade: os organizadores querem ir além da denúncia, conforme explica Gabriela Moncau, do Coletivo Dar. “Estamos interessados em assegurar a liberdade de expressão. Queremos lutar por um dispositivo legal que proíba o uso, pela polícia, das ‘armas menos letais’, contra manifestações pacíficas”. Ela lembra que, além dos dispositivos já empregados contra as marchas recentes, a PM já adquiriu (em São Paulo e outros Estados) os chamados tasers –armas de eletrochoque que paralisam instantaneamente, afetam o sistema nervoso central e podem, comprovadamente, levar à morte.

Embora ainda não haja uma agenda futura consolidada, os debates devem continuar, após o pontapé inicial de amanhã. André Takahashi, do Aymberê, sugere que os coletivos examinem, nos próximos dias, o Projeto de Lei (PL-)222, que pune a discriminação de homossexuais. Propõe ainda uma reflexão mais ampla sobre as rebeliões da juventude – “em especial o Democracia Real Ya! da Espanha e o movimento global que vimos surgir com as revoluções nos paises árabes”.

Se este diálogo inter-coletivos se estabelecer, é provável que dois temas migrem para o centro das preocupações. O primeiro é a amplitude social dos novos movimentos. A onda de manifestações vivida em São Paulo está, até o momento, restrita quase exclusivamente à classe média. Mas isso não revela tendência ao elitismo. Embora o cenário brasileiro seja muito distinto aos do Egito ou Espanha (o que é assunto para outro texto), a disposição para multiplicar relações, entre a sociedade parece manifestar-se também nos grupos brasileiros. Isso está explícito na própria proposta do Aymberê — que, aliás, busca ativamente abrir-se além da juventude. Também aparece, com intensidade crescente, no site do Coletivo Dar – onde se destaca, nos últimos dias, um texto em solidariedade à greve reprimida dos bombeiros do Rio de Janeiro.

Um segundo assunto palpitante é a relação entre novas lutas e projetos contra-hegemônicos de sociedade. Para gente como Gabriela Moncau, é uma discussão necessária. “Um dos desafios da esquerda é dialogar com quem não compõe seus guetos. Vejo-me como alguém anticapitalista. Mas penso que os novos projetos de emancipação podem ser tecidos sem unificar artificialmente pautas. Sou a favor de estabelecer diálogos, e buscar confluências naturais, baseadas em novos valores, lógicas e formas de estar no mundo”, diz ela.

Raízes da Bossa Nova


Nesta sexta-feira, 10 de junho, o Brasil celebra os 80 anos de João Gilberto, criador, ao lado de Tom Jobim (1927-1994), da bossa nova, a mais importante e influente manifestação da música popular brasileira no século 20. Em pleno aniversário do cantor e mais de duas décadas depois da publicação do livro Chega de saudade - A história e as histórias da bossa nova, de Ruy Castro, (Companhia das Letras, 1990), Minas Gerais reivindica para si a parte que lhe toca na trama, desde que o cantor, compositor e violonista, nascido em Juazeiro, na Bahia, resolveu passar temporada na casa da irmã, Maria da Conceição Oliveira, a Dadainha, na Diamantina de meados dos anos 1950. “Depois que li o livro do Ruy, em que ele fala que João não saía de casa e não se relacionava com ninguém na cidade, me senti incomodado”, protesta o professor, músico e escritor Wander Conceição, empenhado na publicação de um livro sobre o tema. “Acho que a cidade tem de resgatar essa história e acabei assumindo a empreitada”, diz.

Além do provável nascimento da célebre batida do violão de João Gilberto na cidade mineira, destacada pelo próprio Ruy Castro em seu livro, Wander diz que pretende provar que o estado, então governado pelo diamantinense e futuro “presidente bossa nova” Juscelino Kubitschek (1902-1976), contribuiu para o surgimento e enriquecimento do movimento responsável pela divulgação da música popular brasileira mundo afora. “Para isso, é necessário contextualizar Diamantina desde a época do compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) - que com a crise da mineração se mudou para o Rio de Janeiro -, até 1956, quando João passou pela cidade”, justifica o professor, cuja pesquisa está a pleno vapor. Ele já entrevistou cerca de 40 pessoas sobre a passagem de João pela cidade, reafirmando a tese de que, desde aquela época, o baiano já sabia onde queria chegar.

O compositor Pacífico Mascarenhas também não oculta o orgulho de ter encontrado João em plena Diamantina dos anos 50. “Fui eu quem falou para o Ruy Castro sobre a passagem dele pela cidade. Lá ninguém sabia que se tratava de João Gilberto, que ainda nem era conhecido no Brasil”, observa o compositor.

De Juazeiro para o mundo
“Vocês ainda vão me ouvir no rádio e na TV”, teria dito várias vezes João Gilberto aos que com ele conviviam em Diamantina, em 1956. Do famoso footing nas capistranas (pedra do meio no calçamento pé de moleque, característico das regiões coloniais) à casa onde viveu com a irmã e o cunhado Péricles Rocha de Sá, engenheiro-chefe da Cia. Mineira de Obras, o historiador Wander Conceição quer esclarecer detalhes da passagem do jovem músico pela cidade. Para isso vem conversando com muitos moradores antigos da cidade, recolhendo histórias reveladoras.

Na entrevista concedida a ele por Vitalino Alves Baracho, que já faleceu, o contador, que morava no pavimento superior da casa da irmã de João, diz que muitas vezes, diante do acúmulo de serviço, tinha de trabalhar à noite mas não conseguia por causa do “treinamento” do músico baiano. "João Gilberto ficava tocando no quartinho, ao lado do banheiro. E era um pim, pim, pim, pim, pim, numa cordinha só. De madrugada, moço! Enfiava hora e hora! Eu na cama, sentado, e ele lá embaixo não parava!”, protestou Vitalino, que dizia à mulher Eni que João era doido. “Não é possível! Isso são horas? Se ainda pelo menos fosse um violão bem tocado!”, reclamava o contador. Já Leon Horowits, filho de família carioca que também foi morar na cidade na mesma época, detinha a maior discografia de jazz de Diamantina, que acabaria atraindo a atenção do baiano.

“Um sujeito extremamente inteligente e educado. Um filósofo, um verdadeiro gentleman”. Assim se refere a João Gilberto a maioria dos entrevistados do professor. De acordo com Wander, desde aquela época João também já dizia para os mais próximos que ele queria levar para a música a dissonância da poesia de Carlos Drummond de Andrade. A história de João Gilberto em Minas Gerais, aliás, vai além de Diamantina. Na cidade colonial, o baiano também conheceu o compositor Pacífico Mascarenhas. A amizade dos dois acabaria se estendendo a Belo Horizonte, onde, já com o primeiro disco gravado, João conheceria ainda Roberto Guimarães, autor de Amor certinho, que ele gravou no disco O amor, o sorriso e a flor, de 1960. “Acho que o João gostou de mim por causa de meu jeito mais tímido”, afirma Guimarães, cujo último contato com o amigo ocorreu por telefone. “Eu na recepção do hotel em que ele estava hospedado na cidade e ele no quarto”, diverte-se o compositor, admitindo que aos gênios tudo se perdoa.

Pacífico Macarenhas atualmente veicula no YouTube o registro de composição de sua autoria,Pouca duração, na voz de João. “Trata-se de uma gravação caseira, de 1959”, recorda. Ele explica que a música só não foi oficialmente lançada em disco pelo cantor baiano porque a mulher dele na época, Astrud Gilberto, manifestou desejo de gravá-la, o que acabou não ocorrendo. Fundador do quarteto Sambacana, que chegou a lançar disco pela EMI-Odeon com suas composições, Pacífico acabaria introduzido nas célebres reuniões da bossa nova, no Rio de Janeiro, na casa do pianista Bené Nunes, ao lado de músicos como Roberto Menescal, Sérgio Ricardo e Luiz Bonfá, entre outros.

O cantor
Para o músico, linguista e professor Luiz Tatit, é necessário situar o momento em que João Gilberto surge na cena musical – década de 1950, quando o canto era extremamente retórico, romântico e passional – para entender a escola do gênero criada pelo cantor. “Como, naquele momento, os estudantes – então os grandes consumidores de disco – se afastavam do meio, como se a música fosse uma espécie de novela mexicana, João procurava a canção objetiva. Ou seja, ele procurava extrair os excessos para ficar apenas com os núcleos: a dissonância do violão, a melodia oscilando em poucas ou até mesmo em torno das mesmas notas”, explica Tatit.

“Como nesse processo os acordes (harmonias) mudam, dá impressão de que é a melodia que está mudando”, acrescenta o professor, para justificar a voz de João como se fosse a própria fala. “A bossa nova promove a decantação. O objetivo dela é o enxugamento”, reforça o ideal do movimento criado pelo artista baiano, lembrando que João Gilberto acabaria fazendo o mesmo com a letra de música, também, ao promover quase que um retorno ao registro infantil de letra. “Exemplo disso são O pato, Lobo bobo e até o disco O amor, o sorriso e a flor, que quase vira um slogan da bossa”.

O traço de delicadeza que acabou responsável pela passagem para uma nova estética musical, segundo Luiz Tatit, não ficou reduzido a João Gilberto. “Tom Jobim também retirava os excessos de notas e acordes, criando acordes quase depenados”, exemplifica. Ele lembra que tal atitude chega à emissão muito peculiar, ao mesmo tempo muita ritmada, ligada à célebre batida do violão de João Gilberto. “A história da valorização rítmica era para a renovação do samba, então muito passional graças ao samba-canção”, justifica Tatit.

Para o papa da bossa nova o samba autêntico tem de ter este aspecto, como no início, na época de Noel Rosa, fizeram Orlando Silva e outros que o influenciaram. “Em vez do surdo, o tamborim que João faz com o próprio violão”, explica Luiz Tatit, justificando o fato de, desde então, cantores e cantoras passarem a imitar João Gilberto. “Nara Leão, por exemplo, só se propôs a ser cantora por causa de João, depois dele. Ela não tinha voz para tal”, recorda. Tatit destaca que foi também a senha para que os compositores começassem a cantar a própria obra. “Chico Buarque jamais cantaria se não houvesse João Gilberto”, afirma. “Depois de João não apareceram mais cantores. Daí as mais de três décadas em que só surgiram cantoras. A exceção é Ney Matogrosso. Na verdade, os compositores é que passaram a cantar”, salienta Tatit.

Quem melhor incorporou o estilo de João? “A questão é a triagem da bossa nova que, de tempos em tempos, quase vira uma questão estética”, vai adiante o professor. Ele cita o exemplo do projeto Acústico MTV, que resultou em discos de voz e violão de ídolos pop como Rita Lee (que gravou um inclusive intitulado Bossa’n’roll) e Lulu Santos, além de Jorge Benjor e Gilberto Gil, entre outros. “É um gesto bossa nova, que de tempos em tempos temos de ter. Isso foi incorporado na nossa cultura e volta e meia alguém faz assim. Cazuza é um exemplo em Faz parte do meu show”.

“João Gilberto e a bossa deixaram isso como reflexão. Toda vez que há processo de decantação, o gesto bossa nova aparece. Hoje, por exemplo, Fernanda Takai é fruto direto da maneira de cantar do João e da Nara Leão, a quem ela dedicou o disco Onde brilhem os olhos seus”, explica Tatit. Para o professor, João nunca deixou de aprofundar sua proposta bossa nova inicial. “Ele foi radicalizando a experiência até quase desaparecer a emissão. Nesse sentido, o João dos anos 1990 e mesmo do novo século é mais interessante que o da bossa nova. Aliás, ele foi cantando cada vez melhor. A idade, neste caso, me parece um detalhe irrelevante, bastaria ele mudar o tom”, garante ao admitir que o cantor baiano está diminuindo o volume de voz, deixando até de emiti-la para chegar ao silêncio.

“Ele nunca abandonou o projeto até hoje. Isto é excepcional”, ressalta Tatit, lembrando que quando os shows se tornaram verdadeiros espetáculos de pirotecnia, João vai para o palco, senta com o violão e canta com o voz desaparecendo, atraindo o mesmo número de pessoas que os grandes espetáculos. “É um fenômeno brasileiro. Não há em outra nação algo parecido, nem que seja com o piano”, afirma. Já as influências internacionais no canto de João Gilberto (Chet Backer, por exemplo) foram importantes talvez num primeiro momento (sobretudo o cool jazz), mas a singularidade obtida nos anos seguintes, garante Tatit, pouco têm a ver com essas influências. “Na bossa nova não há improvisação (algo essencial no jazz), por exemplo. Não há nada no mundo parecido com João Gilberto”.

O violonista
João Gilberto é uma totalidade. Pode-se até avaliá-lo por partes (canto, violão e repertório), mas nenhuma delas se desvencilha do todo. A conclusão é do violonista clássico Turíbio Santos, atual presidente da Academia Brasileira de Música (ABM). “A musicalidade de João é tão extraordinária, que não seria ele se fôssemos avaliá-lo apenas pela batida do violão”, justifica. “João tem a harmonia e a polifonia, encontrada só em grandes violonistas acompanhadores. A escolha do repertório dele, por exemplo, é de uma inteligência incrível. Ele dá para a gente o que ele recriou com o compositor original. A música sai da voz dele já como do autor e dele”, avalia Turíbio.

Para o violonista, a dicção de João Gilberto revela que ele estuda profundamente a música. “Não há palavras e nem notas ao léu. A capacidade de concentração dele é tamanha que cada palavra é dita com uma atenção incrível. Não consigo ouvir João Gilberto sem prestar atenção. Ele nunca pode ser música de fundo”, diz o violonista clássico que certa vez fez um exercício musical a partir do cantor. “Botei o disco dele para tocar e saí tirando os acordes, minuciosamente, para entender o fenômeno. E não consegui”, revela Turíbio Santos, salientando o aspecto imprevisível da obra de João. “Teria de registar tudo em computador”, pondera, admitindo que os imprevistos é que dão a graça à música joão-gilbertiana.

Já a escola de violão de João Gilberto – e olha que o instrumento é importante na música brasileira desde sempre – é única, na opinião do também violonista. “Ele recriou o violão dentro da música brasileira. Alguns antes dele faziam acompanhamentos preciosos, lindos. Como Roberto Nascimento, que era muito meticuloso”, recorda. “Ele pega isso e acrescenta o imprevisto”, reconhece. Para Turíbio, quando ele estuda muito a interpretação de um clássico, a música acaba ficando gelada. Daí a importância do imprevisto. Eu não crio tensão ou surpresas. Essa é a beleza de tocar, para você e para o público”, revela o violonista.

Certa vez, João ligou para Turíbio para fazer uma de suas já famosas brincadeiras. “Mas acho que não deu certo comigo”, diverte-se. Segundo narra, ao telefone, com a voz característica, João Gilberto solicitava que ele afinasse o seu violão. “João, eu sou como você. Entendo de tocar, não de afinar violão”, respondeu Turíbio Santos, esperando que João desligasse o telefone na cara dele. Para surpresa do violonista, os dois ficaram uma hora conversando. A exemplo de outros artistas, Turíbio coleciona casos pitorescos envolvendo João Gilberto, ao telefone ou ao vivo.

A escola do violão joão-gilbertiano tem continuidade, na opinião dele, nos também baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, fãs que compreenderam a capacidade da tríplice aliança violão, voz e público. “A exemplo de João, ambos mobilizam público só com violão nas mãos”. “Tom Jobim sempre foi a grande referência do Brasil lá fora como músico, mas o cantor sempre foi João Gilberto. Ele é um todo”, conclui o violonista, advertindo que radical como o músico brasileiro ele conheceu no meio apenas o pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, que fez o público do Teatro Municipal do Rio de Janeiro esperar por mais de uma hora e meia, até que os funcionários da casa colocassem o instrumento na posição que havia solicitado em contrato.

O compositor
Como compositor, João Gilberto é tão original quanto cantor e violonista. A constatação é do também violonista Juarez Moreira, que gravou ao lado da cantora Ithamara Koorax o único songbook do pai da bossa nova disponível no mercado fonográfico mundial. Trata-se de Ithamara Koorax & Juarez Moreira – Bim Bom – The complete songbook João Gilberto, lançado inicialmente nos Estados Unidos, Europa, Japão, pelo selo Motema Music, e, posteriormente, no Brasil. “A música de João tem todo um conteúdo brasileiro e nordestino. Muitos antes de virar moda, ela já usava os ritmos brasileiros genuínos, de maneira espetacular e totalmente original”, atesta o violonista, salientando que a grande referência do compositor João Gilberto é o Brasil.

Ao trazer à tona a criação de João Gilberto que acabou relegada a segundo plano, injustamente, Ithamara Koorax fugiu da imitação pura e simples do jeito singular de João cantar, como tantos já fizeram. Para ela, ao ouvir uma canção como Bim bom, gravada pelo autor em 1958, como lado B do 78 rotações que tinha Chega de saudade no lado principal, dá para perceber que a estética da bossa nova já estava inteira ali. “Chega de saudade era avançada para a época, chocou todo mundo. Mas o minimalismo de Bim bom ainda era muito mais avançado. Muita gente preferiu fingir que não tinha ouvido, porque realmente não conseguiu entender”, repara.

Segundo ela, até hoje tem gente que não compreendeu a obra do compositor. “Se a cabeça do João não funcionasse na base do Bim bom, não teria existido a concepção que ele aplicou às músicas de Tom Jobim. Ou seja, não teria existido a bossa nova. Pelo menos não do jeito que a concepção estética de João Gilberto a moldou”, justiça Ithamara Koorax. “O grande desafio para a gente foi fazer no disco o mesmo que ele faz na essência: fazer o difícil parecer simples, fácil. Fazer o que é complexo soar descomplicado, natural. Não bastasse isso, ainda é preciso ser sutil, cantar suavemente, frasear de forma criativa, lidar com alterações rítmicas e sincopado, tudo isso ao mesmo tempo numa fração de segundos. Nem dá tempo de raciocinar. Ou você sabe fazer ou não sabe”, ensina a cantora.

Do Estado de Minas

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Lado Bom de Antonina






Pedra dos mitos

A hora mais pesada é aquela

Que ainda vem

Enquanto eu

Sísifo

Heráldico

Da pedra e da montanha

Sopro letras de sabão


A hora mais pesada será ainda

Mais adiante

Porquanto eu

Diógenes

Estóico

Sem lupa e sem livro

A lâmpada apagada


A hora mais pesada é a que está por vir

Antes que eu

Verdugo

Wakizashi

No ventre e na garganta

Corte a última palavra

POESIA

poesia deve ser isso:

o que ferve e congela

o que assombra e desanuvia

o que apaga

e incendeia

acena

à cena vazia


poesia deve ser isso:

o que amálgama e fere

anátema do frio

o que crema e espalha

amassa, esfarela,

e entra no cio


poesia deve ser isso:

morfemas e lexias

qualquer sal

um risco

de difundir

a via

quase

abissal

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Nosso medo


Não usa sapatos novos

Nem assoma na janela

O uivo de sete paredes

Nosso medo


Ruas mal-iluminadas

Pedra assentada no ombro

O que espreita na lida

O nosso medo


Signo de nenhuma estrela

Crucificada no erro

Em vestes corruptíveis

Nosso medo


Fala pelos cotovelos

Entre ossos e lama e aço

Cerra olhos e punhos

Nosso medo


Não tem a morte no rosto

Não oferece a outra face

Ferro e fogo do verso

O nosso medo


Cálice de vinho e veneno

Inverno de mitos sangrentos

Desperta mil vezes em cena

O nosso medo


É uma montanha de pedra

Ciência e deuses no Olimpo

Rosário de cal e areia

Nosso medo


Punhado de sal na têmpora

O dia que ainda não veio

Barco na névoa espessa

Nosso medo


Cova rasa do julgamento

A linha de qual horizonte

Minúcias de cal e areia

Nosso medo


São farpas e ferpas na unha

Estrada longa e estreita

Reza pra todos os santos

O nosso medo


Ferrugem no pó e nos pelos

O sangue de metal e fungos

A certeza de não sabermos

O nosso medo


Em doze motes de cera

Ferro de muros e cercas

Arame em torno do punho

O nosso medo

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Palavras Mágicas

(segundo Nalungiaq/Esquimó)


Em tempos ancestrais

quando pessoas & animais viviam na terra,

uma pessoa podia virar um animal se quisesse

e um animal podia virar um ser humano.

Às vezes eram pessoas

e às vezes animais

e não havia diferença.

Todos falavam a mesma língua.

Naquele tempo as palavras eram mágicas.

A mente humana tinha poderes misteriosos.

Uma palavra dita ao acaso

podia ter conseqüências estranhas.

De repente ela ganhava vida

e o que as pessoas queriam que acontecesse, acontecia.

Só o que era preciso era dizer.

Como explicar isso?


As coisas eram assim.



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(De "Shaking the Pumpkin", antologia de Jerome Rothenberg

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

Fonte: In Knud Rasmussen, The Netsilik Eskimos, Report of the 5th Thule Expedition, Copenhagen, 1931.

Nota: “A xamateca Nalungiaq definia-se como “uma mulher comum”, tendo aprendido o poder das “palavras mágicas” (= poesia) com um tio, também xamã. O comum era não usar a fala ordinária e sim a linguagem dos xamãs, em que todas as coisas & seres eram chamados por nomes diferentes do que eram conhecidos. A consciência esquimó é notável por sua compreensão do processo poético básico”. (Rothenberg, SP, 405)


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Texto extraído do blog 'Estúdio Realidade' (link aí do lado) do poeta Rodrigo Garcia Lopes.